quinta-feira, julho 20, 2006

A Tela

Colocou o pequeno chapéu na cabeça e soltou uma gargalhada, não fazia sentido colocá-lo mas era assim que se fazia desde sempre. Um chapéu, uma pequena boina, algo que aquecesse o que os entendidos chamavam de massa cinzenta.
Sabia que de nada adiantava mas fazia-o quase como se fosse um ritual, uma forma de se proteger de algo que não tinha nome. Que não queria nomear.

Sentou-se confortavelmente e suspirou, há semanas que tentava libertar o sonho que o invadia noite após noite para a tela. Tentara pincéis de vários formatos e tamanhos sem sucesso, as telas, ora demasiado pequenas, ora demasiado grandes, apenas saíam esboços sem sentido, num formato irreconhecível que julgava não ter sido ele a pintar.
Guardava-as todas numa velha arrecadação como se fossem tesouros, quem as visse certamente não compreenderia, apenas uns borrões, umas pinceladas, esgares de um artista sem talento - pensariam.
Mas a fé que tinha era inabalável, todos os dias sentava-se durante horas, abstraído do mundo, diante da tela com o seu pequeno chapéu na cabeça à espera do momento certo para começar a pintar a sua obra. A sua primeira obra.
Quantas vezes tinha pensado em desistir mas algo lhe dizia para não o fazer, para insistir até conseguir. Aprendera com a vida a lutar por tudo o que queria, e mesmo que tivesse conseguido muito pouco bastava-lhe. Sabia-lhe a muito. E era o quanto bastava para conseguir ser feliz, afinal a felicidade é feita de pequenas coisas, não é um estado que se conquiste para sempre. Tinha de ser alimentada diariamente e estava sempre com fome. Gostava disso.

Pegou na palete das cores e escolheu um pincel, as cores que se misturavam numa das pontas cheiravam-lhe a algo doce que não soube precisar, e pensou que talvez fosse esse o sinal para começar. Tentou escolher uma cor para começar, o primeiro traço, o início é o que custa mais. Molhou o pincel no amarelo, depois no vermelho, no castanho, no preto, nenhuma cor lhe parecia a indicada. Suspirou e pensou que era mais um dia perdido, a tela continuaria em branco.
Lavou o pincel e a palete, iria regressar a casa com a mesma frustração dos dias anteriores. A família esperaria por ele, sempre com um sorriso, e ele sentir-se-ia feliz, estranhamente feliz.

Sentou-se novamente e fechou os olhos, deixou que o pensamento o invadisse até tremer de frio, pela inércia, e lentamente conseguiu que ele se esvaísse e foi ficando escuro, cada vez mais escuro, até um só tom se apresentar diante dos seus olhos ainda fechados.

Num rasgo em que lhe pareceu nem ter respirado pegou no pincel e na tela. Escolheu uma única cor em diversos tons. Do mais claro ao mais escuro todos encaixavam. Desenhou o sonho e todo o universo que o tinha rodeado. Criou a sua primeira obra, perfeita como tinha imaginado. Nada menos que perfeito conseguiria descrever tal criação.

Chamou-lhe simplesmente "Azul".

quinta-feira, julho 13, 2006

Evangelho Quotidiano

Vale a pena lêr o Evangelho de hoje, que deixo aqui para duas pessoas muito especiais: uma constatará que hoje é dia 13; a outra reencontrará nestas palavras a fonte de novas frases que, um dia, certamente, voltará a transmitir da mesma forma perfeita de sempre:
Evangelho segundo S. Mateus 10,7-15.
Pelo caminho, proclamai que o Reino do Céu está perto. Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demónios. Recebestes de graça, dai de graça. Não possuais ouro, nem prata, nem cobre, em vossos cintos; nem alforge para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado; pois o trabalhador merece o seu sustento. Em qualquer cidade ou aldeia onde entrardes, procurai saber se há nela alguém que seja digno, e permanecei em sua casa até partirdes. Ao entrardes numa casa, saudai-a. Se essa casa for digna, a vossa paz desça sobre ela; se não for digna, volte para vós. Se alguém não vos receber nem escutar as vossas palavras, ao sair dessa casa ou dessa cidade, sacudi o pó dos vossos pés. Em verdade vos digo: No dia do juízo, haverá menos rigor para a terra de Sodoma e de Gomorra do que para aquela cidade.»
Da Bíblia Sagrada.
Comentário ao Evangelho do dia feito por : S. Gregório Magno (cerca 540-604), papa, doutor da Igreja Homilias sobre os evangelhos, 6

“Recebestes de graça, dai de graça”Vós podeis, também vós, se o quiserdes, merecer este belo nome de mensageiros de Deus. Com efeito, se cada um de vós, segundo as suas possibilidades, na medida em que tiver recebido a inspiração do céu, desviar o seu próximo do mal, se tomar a seu cuidado trazê-lo para o bem, se recordar ao transviado do Reino o castigo que o espera na eternidade, é evidentemente um mensageiro das santas palavras de Jesus. E que ninguém venha dizer: Eu sou incapaz de instruir os outros, de os exortar. Façam ao menos o que vos é possível, para que um dia não vos peçam contas do talento recebido e mal conservado. Porque aquele que preferiu esconder o seu talento em vez de o fazer render não tinha recebido mais do que um talento (Mt 25, 14s)...
Arrastai os outros convosco; que eles sejam os vossos companheiros na estrada que leva a Deus. Quando, indo à praça ou aos banhos públicos, encontrardes alguém desocupado, convidai-o a acompanhar-vos. Porque as vossas acções quotidianas servem, elas próprias, para vos unir aos outros. Ides a Deus? Tentai não chegardes lá sozinhos. Que aquele que, no seu coração, já escutou o apelo do amor divino tenha para com o seu próximo uma palavra de encorajamento.

sábado, julho 08, 2006

Encruzilhadas

Cruzo-me com pessoas todos os dias, com acontecimentos, instantes, pormenores deliciosos e mordazes de um mundo que não pára de girar. As linhas demasiadamente tortas, o caminho que se torna uma encruzilhada, um labirinto sem fim. Há momentos em que é mais fácil desistir, parar de pensar e de agir. Simplesmente ficar a olhar o relógio a corroer as horas até que tudo se torne apenas uma névoa espessa e nada mais faça sentido.
Nada mais utópico existe.
É nestes instantes que descubro réstias de uma força que nunca pensei ter, um esgar de coragem e de luta para com o mundo. Ele não conspira contra nós, nunca o fará, e basta-me acreditar que assim é para continuar uma luta... por mim, pelas pessoas que me são especiais... Só assim vale a pena Viver...

Não acreditar em coincidências torna-me uma pessoa mais atenta às mensagens que por aí circulam... Muitas vezes demasiadamente, tenho consciência disso. Mas há mensagens tão bem colocadas que não há como fugir nem como ignorar.
Poderia eu, há algum tempo, dizer que eram apenas devaneios de alguém com bastante tempo livre. Hoje não consigo acreditar nisso... Não faria sentido... De forma alguma.

Um dia conto-te uma história...

14.13: "Ele há coisas"

sexta-feira, julho 07, 2006

Felicidade - II

"Felicidade. Chamar-se-á Felicidade." - pensou a mãe, exausta, ao ouvir o som dos soluços aflitos da filha que acabara de trazer ao mundo. Um nome que carregaria o peso da consciência materna, que duplicara de peso ao saber que tinha dado à luz uma menina. Felicidade seria o nome adequado para um ser cujo destino já se revelava infeliz; era a compensação que a mãe devia àquela menina que não pedira um pai que não a desejava, nem uma mãe que também não saberia desejá-la, assim que encarasse o olhar reprovador do marido. Felicidade era a única coisa que não poderia oferecer àquela criança, mas o seu nome anularia esta impossibilidade, pelo menos, através da força do amor que a mãe assim lhe dedicava.
-"Mais uma rapariga? Mas, porquê eu? Porquê esta miséria? Porquê este destino?" - a amiga que assitira ao parto acabara de informá-lo. Após pronunciar estas palavras, ele saíu, fechando bruscamente a porta atrás de si. Queria esquecer-se do que acabara de acontecer. Não poderia voltar a ser pai e muito menos de uma rapariga. Como podia ter sido tão irresponsável e permitir que outros olhos lacrimosos viessem ao mundo, pedindo-lhe alimento e agasalho? Já se sentia suficientemente culpado, ao observar as feridas nos pés dos outros dois filhos, por terem apenas um par de sapatos rotos cada um. Já dava reviravoltas na cama, imaginando como conseguiria um pouco mais de dinheiro no dia seguinte, uma vez que, o pouco que ainda conseguia cultivar nas terras pouco férteis herdadas do pai, já mal dava para a subsistência da família. Uma rapariga não trazia braços fortes para trabalhar, mas um ventre que seria necessário observar cautelosamente. Mais uma rapariga era mais uma hipótese de vêr a sua família manchada de vergonha. Já se sentia sem forças e o seu rosto envelhecera desde que a mulher lhe tinha anunciado a gravidez. Agora, que os piores presságios se confirmavam, tudo o que queria era mergulhar o fardo que carregava e que aumentara de volume, em vários copos de vinho, se possível, até perder os sentidos...

quarta-feira, julho 05, 2006

Palavras

As palavras são como moldes da realidade de cada um. É quando enchemos os moldes com substâncias consistentes, dando forma às palavras, que estas ganham um sentido e podem ser expostas, apalpadas, contempladas, utilizadas. Às vezes, utilizamos o gesso ou o barro, correndo o risco de quebrá-las um dia. Pior ainda quando criamos palavras de cristal ou de vidro, tão frágeis que necessitam de muito cuidado ao serem pronunciadas. Mas, que felicidade ao vêr uma bonita criação em ferro ou aço!
Tantos materiais ao nosso dispôr! Tantas técnicas e possibilidades criativas! Com a mesma madeira podemos construir a palavra casa, abrigo de sonhos, de momentos únicos de intimidade, de família e amigos; e a palavra caixão, abrigo da solidão calada para sempre. Com a mesma matéria criamos a confiança em si mesmo, mas se exagerarmos na dimensão da obra, não é difícil de vêr surgir o orgulho, a indiferença, ou a soberba.
Assim como é preciso ter cuidado na construcção das palavras, torna-se indispensável a sua correcta utilização, pois corremos o risco de empregar palavras de vidro como se fossem inquebráveis, ou de nos pormos a soprar palavras que ainda não passaram pelos moldes e, por isso, desprovidas de qualquer sentido.
Este último perigo é particularmente doloroso quando nos referimos a seres humanos. O que dizer, por exemplo, da palavra mãe, quando o criador se esqueceu de que não chega criar uma palavra e empregá-la a todas as obras qe reunem características mais ou menos similares? O que significa, afinal, a palavra mãe? Concepção, parto, maternidade, amamentação. Palavras que pertencem ao mesmo conjunto de moldes, mas que não chegam para definir esta palavra que, um dia, Alguém decidiu colocar entre as mais preciosas de todas as criações.
Infelizmente, alguns criadores esqueceram-se de juntar a este conjunto os moldes do carinho, da amizade, da compreensão, do colo, da felicidade, da união, da comunhão, do companheirismo, da protecção, da segurança, da confiança, do amor, do Amor, do abraço, do beijo, do conselho, da sabedoria, da calma, da sinceridade, do diálogo, da lágrima, do conforto... Atenção, senhores criadores, a falta de todos estes moldes reflecte-se na incorrecta utilização da palavra mãe! E esta palavra é uma preciosidade, não podemos continuar a falsificá-la, a utilizá-la indiscriminadamente, é preciso completá-la e impedir que estes erros sucessivos causem uma cadeia de falsificações. Como é triste observar a palavra filho ficar eternamente condenada, após a falsificação da palavra que lhe confere grande parte do sentido! Na mesma galeria, é difícil vêr exposta uma magnífica obra de arte entre a mediocridade que caracteriza todas as outras, diria mesmo, praticamente impossível! Pensemos nisto, senhores criadores e priviligiemos a qualidade das nossas palavras!

Felicidade - I

"Como posso dar-lhe mais esta notícia?" - pensou - "Não pode ser." As lágrimas escorregavam-lhe pelas faces côncavas, desenhando trajectos irregulares sobre as saliências de um rosto que já há muito conhecia as privações reservadas às famílias numerosas daquela aldeia.
Estava grávida. Mais uma boca a alimentar, mais um estômago constantemente faminto. Na sua mente, apenas o desejo de não ter aquela certeza. No seu coração, a angústia de saber o desgosto que causaria ao marido e a morte que, certamente, causaria àquela criança.
-"Mulher, porque choras?". A voz grave do seu homem sobressaltou-a. Esconder a verdade. Não se sentia com forças naquele momento. Era preciso esconder-lhe a verdade.
-"Sei lá, homem." - respondeu de voz trémula - "Fraquezas de mulher!"
-"O Bicas ainda não me pagou. Não sei mais o que dizer-lhe, mas se continua a fugir com o rabo à seringa, vou ter de mostrar-lhe como são as coisas!".
O temperamento explosivo do marido causava-lhe arrepios. Bebia muito e costumava bater-lhe, mas ela preferia sentir o corpo a queimar sob os seus arremessos violentos, que vêr as suas crianças a pagarem a dívida do vizinho ou a constatação diária da profunda miséria em que viviam:
-"Vais vêr que ele paga ainda esta semana. Isto anda tão difícil para todos!" - respondeu-lhe ela, com a voz suavizada pelo medo.
-"Até tu defendes aquele miserável? Deve a mais de dez pessoas, mas não deixa de embebedar-se todas as noites! Escreve o que te digo: ou me paga amanhã, ou..." - a frase foi interrompida pelos gritos alegres das crianças que chegavam da escola. Ruborizado pela cólera provocada por aquela interrupção brusca, acrescentou, gritando:
-"E esses fedelhos, antes não tivessem nascido! Já não sei como arranjar dinheiro para comprar pão e leite e eles a pedirem-me cadernos e lápis!"
A mãe correu a acolhê-los, preocupando-se em conduzi-los às traseiras do casebre e a silenciá-los. Sentia-se feliz por vê-los sorrir, apesar de saber que estavam sem comer desde o dia anterior. Não queria que entrassem em casa, correndo o risco de vêr palavras ingénuas, tantas vezes pronunciadas inadvertidamente pelas crianças, provocar mais uma vez a perda de controle do pai.
Correram a abraçar a mãe, com o sorriso iluminado pelo reconhecimento da única fonte de calor e de conforto daquela casa. Nos seus braços, sentiam-se seguros e sabiam que poderiam enfrentar o mundo, a fome, o olhar reprovador dos outros...