sexta-feira, novembro 30, 2007

Essencial

(L'essentiel est) "tout ce qui ne s'apprend pas, ne s'enseigne pas, ne se juge pas, ne se punit pas." (Jean Cocteau)
Figuras de estilo que sobressaem da eloquência de uma língua como o Francês, é algo que não me deixa indiferente, aliás, é algo que me deixa diferente. Todas as sextas-feiras, a minha disposição é a mesma, preguiçosa, cataléptica, arrastada. A mesma rotina de gestos ausentes: casa-de-banho, casaco, eléctrico (ou carro, no caso de uma abençoada boleia), sala de aula. Procuro um lugar que permita manter-me nesta ausência de mim e aguardo o fim da aula. Aguardo sempre o fim. Novamente o casaco, o eléctrico, a casa. Quase fim-de-semana.
Hoje, ao sentar-me aqui para descrever esta manhã, apercebo-me de que tudo isto não se deve senão a uma falha imperdoável da memória, que apaga os dados recebidos na semana anterior e não deixa réstias do prazer que as tais figuras de estilo, na boca de um mestre de oratória, me têm proporcionado. Perdão ao Sr. Gergely, o mestre. São duas horas de deleite linguístico, de estórias da Revolução Francesa, de Napoleão, dos reis Ingleses ("Le roi anglais a des chaussures, il n'en achète pas!"), das mulheres e homens que enriqueceram, ao longo da história o fluxo de ideias, de estética, de valores da humanidade. Já há poucos mestres assim. Eu não conheço mais nenhum.
Na diversidade de coups de génie que o mestre Gergely seleccionou não tanto para nosso benefício, mas sobretudo para afirmar a posteridade de criações originais e inigualáveis, a arte e o engenho são mais do que simples conceitos. Hoje, a frase que transcrevi acima, ecoou na minha mente, por breves segundos. Reli-a. Sublinhei-a. Trouxe-a para aqui. Não pode ficar esquecida numa página de um livro do autor francês, ou na folha solta do curso de Metodologia da Comunicação Escrita do 3° ano de Informação e Comunicação, na Universidade Livre de Bruxelas. Tem de circular. Tem de ecoar também na tua mente e apropriar-se dos pensamentos de uma sociedade em busca de sentido. Tem de ganhar forma, tornar-se ser, corpo, gesto.
Este essencial a que se refere Cocteau, sem o nomear, não é mais que o horizonte a que a nossa natureza humana aspira, mas que parece afastar-se cada vez mais, até se tornar ilusão ou até cair no esquecimento. Entorpecidos pelo brilho dos placards, drogados por noções outrora desconhecidas (inúteis?) como globalização, poder de compra, competitividade; assim viramos as costas a esse essencial e cometemos a incoerência recorrente de o procurar nos livros, nas teses, nas bocas de experts, de políticos ou de qualquer outra personagem sob as luzes da ribalta. Tornamo-nos ainda mais frenéticos. É preciso fazer tudo, aproveitar tudo, conhecer tudo. Escolhas? Não há tempo! Excessos? Médicos especialistas, clínicas de stress, spa's. O outro? Que outro? Os verbos passaram a conjugar-se na primeira pessoa, apenas. E não, não é responsabilidade de um monstro chamado Inglês!
O essencial é tudo o que não se aprende, não se ensina, não se julga, não se pune. O eco destas palavras, na minha mente, continua a ser Amor. Mas, também poderia ser Verdade, Respeito, Sinceridade, Solidariedade...
(na caixinha de comentários, deixa também o teu horizonte! É assim que os diferentes fragmentos que és tu, sou eu, são os outros, vão compondo a bela melodia da Vida!)

quarta-feira, novembro 07, 2007

Fronteira

Veio-lhe à ideía de saltar para dentro do balão. "Que ideía parva!", pensou. "Se o vento estiver de feição, nem sei onde vou parar. E niguém me encontrará!" Sentiu o estômago às voltas e teve vontade de vomitar. O balão já saíra do lugar e balançava, impelido por um vento fraco, que aquela tarde quente de Verão não conseguira afastar. Era quase uma brisa. O balão não podia ir muito longe. O desenho de um sorriso começou a formar-se no seu rosto e logo se rasgou em diferentes ecos de uma gargalhada trinfante. Sabia que voltara a passar pela escuridão reconfortante do ventre de sua mãe e que era preciso renascer. Ao longe, as vozes estranhas confundiam-se com os gemidos que faziam vibrar as paredes grossas daquele balão. Não sabia de onde vinham, mas sabiam que também eram seus, estes gemidos que a sua própria garganta reconhecia, outrora produzidos por outra dor, noutro tempo, noutro espaço. Quis poder mexer as mãos, estender os braços e alcançar o pescoço de sua mãe; pedir-lhe baixinho que não gemesse, que não chorasse; dizer-lhe que estava ali, que não tivesse medo. E o balão continuou a mover-se, agora já sob a influência da agressividade do vento frio, aquele que ainda há instantes havia sido expulso da tarde quente de Verão. Essa ficara lá em baixo. Ali não havia calor, nem crianças a brincar, nem ondas do mar, nem arroz doce, nem cânticos de Natal. Ali havia o frio, os gemidos, a dor, os gritos abafados ao nascer. E o balão não parava. Contrariamente ao que previra, os Anjos não brincavam às escondidas atrás das nuvens. Não havia um céu, para além do azul que tantas vezes contemplara, através da janela do seu quarto. O que encontrava, naquela incerteza da viagem de balão, era o vazio. Um vazio pesado e bolorento. Voltou a sorrir. Sentia que uma força o impelia a libertar-se daquele conforto do balão e a lançar-se no desconhecido que o rodeava. Era um desconhecido aterrador. Escuro, pastoso, bafiento. Mas, algo dentro de si palpitava e ameaçava explodir, caso decidisse permanecer como espectador daquele filme de terror sem actores, enredo, sangue. E lançou-se. Impediu os pensamentos de continuarem a fluir e deixou-se cair. Como um pássaro que acaba de nascer, sem saber para que utilidade dar às extremidades do seu corpo, caiu. A queda pareceu infinita, mas saboreou cada novo odor, cada novo som, cada nova textura. Experimentou rodopiar com o auxílio do vento, dançou, cantou. A voz continuava muda, mas os sentidos cantaram com ela, por ela. Todo o seu ser rejubilava com o novo despertar. Sabia que ia morrer no instante seguinte, mas a vida que a queda lhe devolvera não tinha preço. Voltaria a morrer mil vezes.
Parou. Sabia que ainda não atravessara a fronteira da existência. Porque parara, então? Abriu os olhos e estremeceu com o abraço envolvente que rodeou o seu corpo. Levantou o rosto e recebeu o beijo que aguardava os seus lábios. Quis pronunciar algo, mas a voz teimava em não sair. Aninhou-se no repouso daquele abraço. Sentiu o sabor de uma lágrima salgada. Tinha caido dentro de si. Era a última. Adormeceu.

terça-feira, novembro 06, 2007

Da minha Vida

Dou-te a mão e deixo-me ficar, deitada sobre a humidade macia e amarela das folhas de Outono que nos ensopam as roupas. Seguimos com o olhar a trajectória de um pássaro azul e preto que atravessa os ramos das árvores que se despiram para nos receber, neste festim erótico de luz que se esconde, quando parecemos alcançá-la; de calor que emana das cores que nos abraçam e nos atiram ao chão, pra abraçar-nos ainda com mais força. Nos ouvidos, o silêncio. No olhar, o espectáculo da Vida antes da vida, aquela em que ainda não ousámos penetrar. Contemplá-la assim, virgem, pura, verdadeira , é sermos parte dela, é sentir a força das raízes que nos prendem à origem de tudo. E ser feliz.
Amar-te. Nada mais.
Voltamos a dar a mão. Já não somos um, mas dois. Já não és aquele que foi, há instantes, mas aquele que sempre foste. Mudamos de cenário e olhamos em frente. Um écrã de cinema. Imagens a preto-e-branco. Legendas a branco e preto. Não percebemos nada. Mas o nosso encontro vale a pena. Apetece-me sair desta sala, voltar a correr a teu lado e a chorar no teu ombro, mas sei que é preciso ver o filme até ao fim. Compreendê-lo, talvez. Mas aguentar até ao seu desfecho. Depois, talvez possa voltar a vestir o meu vestido de bombazina azul e correr atrás de ti, vestido da mesma cor e do mesmo tecido. Diminuir o teu nome e acariciar-te o rosto quando a gata Lobito voltar a fugir. Contar lagartixas mortas à pedrada e ganhar-te em bravura. Sentar-me a teu lado a descascar feijão ou simplesmente a ver-te andar de bicicleta, sem rodinhas. Abraçar-te quando o cheiro das flores voltar a confundir-se com o cheiro da morte. Depois, quero sorrir-te e sair desta sala também. Deixar este filme guardado numa prateleira do sótão e revê-lo sempre que a janela se abrir para um girassol entrar, no bico de um pássaro chamado Saudade.