quarta-feira, novembro 07, 2007

Fronteira

Veio-lhe à ideía de saltar para dentro do balão. "Que ideía parva!", pensou. "Se o vento estiver de feição, nem sei onde vou parar. E niguém me encontrará!" Sentiu o estômago às voltas e teve vontade de vomitar. O balão já saíra do lugar e balançava, impelido por um vento fraco, que aquela tarde quente de Verão não conseguira afastar. Era quase uma brisa. O balão não podia ir muito longe. O desenho de um sorriso começou a formar-se no seu rosto e logo se rasgou em diferentes ecos de uma gargalhada trinfante. Sabia que voltara a passar pela escuridão reconfortante do ventre de sua mãe e que era preciso renascer. Ao longe, as vozes estranhas confundiam-se com os gemidos que faziam vibrar as paredes grossas daquele balão. Não sabia de onde vinham, mas sabiam que também eram seus, estes gemidos que a sua própria garganta reconhecia, outrora produzidos por outra dor, noutro tempo, noutro espaço. Quis poder mexer as mãos, estender os braços e alcançar o pescoço de sua mãe; pedir-lhe baixinho que não gemesse, que não chorasse; dizer-lhe que estava ali, que não tivesse medo. E o balão continuou a mover-se, agora já sob a influência da agressividade do vento frio, aquele que ainda há instantes havia sido expulso da tarde quente de Verão. Essa ficara lá em baixo. Ali não havia calor, nem crianças a brincar, nem ondas do mar, nem arroz doce, nem cânticos de Natal. Ali havia o frio, os gemidos, a dor, os gritos abafados ao nascer. E o balão não parava. Contrariamente ao que previra, os Anjos não brincavam às escondidas atrás das nuvens. Não havia um céu, para além do azul que tantas vezes contemplara, através da janela do seu quarto. O que encontrava, naquela incerteza da viagem de balão, era o vazio. Um vazio pesado e bolorento. Voltou a sorrir. Sentia que uma força o impelia a libertar-se daquele conforto do balão e a lançar-se no desconhecido que o rodeava. Era um desconhecido aterrador. Escuro, pastoso, bafiento. Mas, algo dentro de si palpitava e ameaçava explodir, caso decidisse permanecer como espectador daquele filme de terror sem actores, enredo, sangue. E lançou-se. Impediu os pensamentos de continuarem a fluir e deixou-se cair. Como um pássaro que acaba de nascer, sem saber para que utilidade dar às extremidades do seu corpo, caiu. A queda pareceu infinita, mas saboreou cada novo odor, cada novo som, cada nova textura. Experimentou rodopiar com o auxílio do vento, dançou, cantou. A voz continuava muda, mas os sentidos cantaram com ela, por ela. Todo o seu ser rejubilava com o novo despertar. Sabia que ia morrer no instante seguinte, mas a vida que a queda lhe devolvera não tinha preço. Voltaria a morrer mil vezes.
Parou. Sabia que ainda não atravessara a fronteira da existência. Porque parara, então? Abriu os olhos e estremeceu com o abraço envolvente que rodeou o seu corpo. Levantou o rosto e recebeu o beijo que aguardava os seus lábios. Quis pronunciar algo, mas a voz teimava em não sair. Aninhou-se no repouso daquele abraço. Sentiu o sabor de uma lágrima salgada. Tinha caido dentro de si. Era a última. Adormeceu.