quarta-feira, julho 05, 2006

Felicidade - I

"Como posso dar-lhe mais esta notícia?" - pensou - "Não pode ser." As lágrimas escorregavam-lhe pelas faces côncavas, desenhando trajectos irregulares sobre as saliências de um rosto que já há muito conhecia as privações reservadas às famílias numerosas daquela aldeia.
Estava grávida. Mais uma boca a alimentar, mais um estômago constantemente faminto. Na sua mente, apenas o desejo de não ter aquela certeza. No seu coração, a angústia de saber o desgosto que causaria ao marido e a morte que, certamente, causaria àquela criança.
-"Mulher, porque choras?". A voz grave do seu homem sobressaltou-a. Esconder a verdade. Não se sentia com forças naquele momento. Era preciso esconder-lhe a verdade.
-"Sei lá, homem." - respondeu de voz trémula - "Fraquezas de mulher!"
-"O Bicas ainda não me pagou. Não sei mais o que dizer-lhe, mas se continua a fugir com o rabo à seringa, vou ter de mostrar-lhe como são as coisas!".
O temperamento explosivo do marido causava-lhe arrepios. Bebia muito e costumava bater-lhe, mas ela preferia sentir o corpo a queimar sob os seus arremessos violentos, que vêr as suas crianças a pagarem a dívida do vizinho ou a constatação diária da profunda miséria em que viviam:
-"Vais vêr que ele paga ainda esta semana. Isto anda tão difícil para todos!" - respondeu-lhe ela, com a voz suavizada pelo medo.
-"Até tu defendes aquele miserável? Deve a mais de dez pessoas, mas não deixa de embebedar-se todas as noites! Escreve o que te digo: ou me paga amanhã, ou..." - a frase foi interrompida pelos gritos alegres das crianças que chegavam da escola. Ruborizado pela cólera provocada por aquela interrupção brusca, acrescentou, gritando:
-"E esses fedelhos, antes não tivessem nascido! Já não sei como arranjar dinheiro para comprar pão e leite e eles a pedirem-me cadernos e lápis!"
A mãe correu a acolhê-los, preocupando-se em conduzi-los às traseiras do casebre e a silenciá-los. Sentia-se feliz por vê-los sorrir, apesar de saber que estavam sem comer desde o dia anterior. Não queria que entrassem em casa, correndo o risco de vêr palavras ingénuas, tantas vezes pronunciadas inadvertidamente pelas crianças, provocar mais uma vez a perda de controle do pai.
Correram a abraçar a mãe, com o sorriso iluminado pelo reconhecimento da única fonte de calor e de conforto daquela casa. Nos seus braços, sentiam-se seguros e sabiam que poderiam enfrentar o mundo, a fome, o olhar reprovador dos outros...