domingo, agosto 13, 2006

Chuva de outono

Ela corou um pouquinho
e respondeu baixinho,
"Sou a Cinderela"...
Desligou o auto rádio. Os olhos transbordavam de um cansaço feliz, nos lábios um traço leve de um sorriso que ficara esquecido no rosto. Recordava os seus momentos de Cinderela e não tinha vontade de deixar partir as réstias de sonhos que ainda a prendiam à realidade. Tanto tempo já tinha passado, mas a idade tinha-lhe provado que o tempo não era mais que uma brincadeira dos anjos, uma roda gigante onde sentam a humanidade à nascença, fazendo-a depois girar, voltando vezes sem conta ao ponto de partida. As rugas do seu rosto apenas revelavam o resultado da erosão do vento e da chuva, provocada quando a roda girou mais depressa, mas não o envelhecimento ou o destino inevitável dos que aguardam a morte. O tempo não existia e a prova disso era o seu coração de menina, as suas faces coradas e aquele sorriso esquecido.
Gostava de reconhecer os passos dados outrora, em cada árvore, em cada ramo partido, em cada raio de sol que penetrava através das folhas molhadas. Tinha a certeza que as mesmas impressões digitais continuavam espalhadas naquele local, onde tinha descoberto, pela primeira vez, o amor. Tinha sido um instante fugidio, mal recordava o toque do corpo que a abraçara, que a cheirara, que a acariciara, que a penetrara, por tão breves segundos, como um grito que não podia mais ser calado. Mal recordava as mãos ávidas que, tão sabiamente, haviam feito escorregar o vestido que trazia, através das formas virgens do seu corpo. Não conseguia lembrar-se do cheiro, do sabor da pele daquele que a amara naquele dia, sentando-a para sempre ao seu lado, na tal roda gigante da vida. No entanto, recordava-se do seu sorriso, do momento em que os lábios que até então tinha beijado às escondidas, se entreabriram e lhe revelaram o segredo do mundo. Tinha nascido para acolher aquele sorriso, para lhe dar um sentido, assim que o contemplasse pela primeira vez. A partir desse segundo, a sua existência mudou para sempre, a roda girou freneticamente e, como que por magia, jactos de côr inundaram tudo o que os rodeava.
Anos mais tarde, aquele sorriso que se rasgara apenas para ela, cristalizar-se-ía e, mais uma vez, seria ela a guardiã da sua memória.
Chegou a casa. Saíu do carro e deixou as gotas da primeira chuva de outono cobrir-lhe o corpo. Era ele, como da primeira vez. Como sempre. Desde aquele sorriso.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Engraçado a forma como por vezes vemos as coisas e as torneamos de modo a sonhar, nem que por breves instantes... Porém a realidade rapidamente vem ao de cima levando consigo aquele sonho... e como um gosto de te ver dormir cinderela, obrigado por mais uma vez me teres dado essa imagem que durou breves instantes mas que foram vividos como se de uma eternidade se tratasse... O relógio não para e acabam de tocar as doze badaladas... resta esperar que haja um novo baile, um continuar do sonho, uma realidade...

9:21 da manhã  

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