domingo, outubro 22, 2006

Domingo

6h45m. O quarto continua mergulhado na escuridão, mas eu sei que é domingo. Sei que a Felicidade está à minha espera e não posso atrasar-me. Toco a textura aveludada da alcatifa com os pés descalços e ligo o aquecedor. Sabe-me bem voltar a entrar no quarto, depois deste ser aquecido. Desço as escadas, ainda em pijama, pois tenho o hábito de dizer que não faço nada sem comer primeiro. Hábito, vício, seja o que for. Sabe-me bem saborear o pão com banana e o iogurte com cereais, ainda com o rosto por lavar. É como se desejasse prolongar a serenidade da noite, sem vê-la dissipar-se bruscamente na água fria do lavatório. Só começa a amanhecer quando sinto o café a queimar-me a garganta, de preferência, já com um livro ou uma revista como companhia.
Hoje, não foi diferente. Voltei a subir as escadas e deixei-me invadir pelo calor aconchegante do quarto. Outro dos pequenos prazeres da manhã é percorrer a casa toda descalça, para depois regressar ao quarto, ainda quente da noite ou já aquecido, nestes dias de Inverno precoce. Pus a água a correr e despi-me. Senti a água quente a acariciar-me o corpo e deixei-a levar as réstias daquela que eu tinha sido, até este banho, até esta manhã. Porque somos sempre diferentes, quando acordamos. E eu estava a acordar.
Vesti-me, junto ao aquecedor. Preparei a mochila, maquilhei-me (porque hoje é Domingo e apetecia-me) e saí. Ruas cortadas. A paragem do autocarro não estava ali, mas os meus amigos do Domingo de manhã informaram-me que tinha sido desviada por causa da feira (brocante, se quero ser precisa, apesar da imprecisão se manter). Apanhei o autocarro e sentei-me. Sorri. Era Domingo.
A Felicidade já me esperava. Estava um pouco adoentada (curioso!), mas sorridente:
-"Dá-me o teu dedo. Tenho um presente para ti. Este anel tem 50 anos e sai das minhas mãos para as tuas. Estima-o como eu fiz até aqui, porque eu só conseguiria oferecê-lo a alguém muito especial". Não soube o que dizer. Balbuciei um Obrigada idiota e dei-lhe um beijo. Porque será que nunca sei o que dizer, nestes momentos? Acho que perdi o hábito de agradecer, porque perdi o habito de considerar que mereço algo.
Chegámos ao destino. Café português. Sabe melhor ainda. Reservámos Cozido à Portuguesa para o almoço. Porque hoje é Domingo.
Deixei a Felicidade a encontrar-se, a reencontrar-se, como acontece todos os Domingos, e subi para encontrar-me com Deus. É a minha hora. É o meu momento. É o nosso encontro. Sou assídua e pontual, porque Ele está sempre à minha espera e eu preciso da Sua força. Para mais uma Missão. Para mais um Domingo, para mais uma semana. Li, sublinhei, fui à Fonte. Preparei-me para a catequese, com a Sua ajuda. Deixei-O entrar no meu coração, através da música, das Palavras, da Oração. E deixei-O ficar. E é tão bom assim. E é sempre tão bom assim.
Encontro-me com adolescentes e crianças. É tão difícil ser-se uma e várias ao mesmo tempo! Mas, tão possível, tão gratificante, tão enriquecedor! A Felicidade já está junto a mim. Olha as crianças nos olhos e faz como só ela sabe fazer, como só ela pode fazer. Eu aprendo. Em silêncio.
A Missa: a imagem de Nossa Senhora recebeu uma nova coroa. Cantou-se a Maria e eu senti que levantava os pés do chão e voava, a uma velocidade alucinante, e me encontrava outra vez em frente à televisão, com um lenço branco na mão, a acenar. E vi-te, sentado a meu lado. E revi as suas lágrimas nas minhas, ao receber a notícia. E voltei a ouvir as suas palavras: "Estava ensinar os meninos... estavam com um lencinho branco... e ele todo queimado, no hospital... à mesma hora."
Preparações, encontros, união, comunidade.
O cozido à Portuguesa. A Felicidade continua a fazer-me companhia. Eu ofereço-lhe o meu colo e recebo as suas mágoas no meu ombro, mas vejo-a sorrir e só isso já chegava para fazer deste Domingo um tesouro.
Deixei-a finalmente partir. Vozes familiares ao telefone e saí para a dança. Liberto-me. Chego mais perto de mim e sinto que renasci. O ritmo quente da Salsa invade-me o espírito, que se move sózinho. A felicidade, afinal, continua ali. Sorrio, deixo o corpo ouvir a música, sem qualquer impedimento. Eu e a música somos uma só. A Vida aconteceu ali. Mais uma vez.
Volto a partir. Desta vez, jantar com amigos. Amizade, carinho, muito amor. O dia chega ao fim.
Acabei de ligar o aquecedor. E se amanhã voltasse a ser domingo?
(A banalidade desta descrição não acaba aqui. Todos os dias são banais e por isso é que são valiosos, pois continuo a acreditar, ao abrir os olhos, pela manhã, que vale a pena voltar a acordar. E voltar a ser banal, nem que seja só para voltar a vêr os mesmos rostos, repetir os mesmos gestos, comer o meu pão com banana e ligar o aquecedor. Vale a pena, porque é uma oportunidade que só me é dada a mim e apenas uma vez. É com base nesta partilha de banalidades, afinal, que se constrói a humanidade. E é tão bom ser-se humano! ;)