sábado, setembro 02, 2006

Mais uma noite na noite

"Clang"
O primeiro som que ouviu desde que a noite caira. A escuridão que primeiro invadia a cidade, depois a casa e finalmente a si mesmo já não o incomodava. Antes do barulho ensurcedor romper o silêncio apenas a sentia invadir todos os recantos, depois era apenas uma confirmação, como se o mundo lhe sussurrasse ao ouvido o que há tanto tempo já sabia.

Era sempre o primeiro som que ouvia, conhecia-o tão bem. Há demasiadas noites que apenas ele o acompanhava. Dizia-lhe muitas vezes que era demasiado tarde para sair, em outras noites dizia-lhe que a escuridão já tinha chegado ao seu auge, mas todas as vezes lhe dizia que era demasiado cedo para ir dormir. Seria sempre demasiado cedo.
Teria de esperar o raiar do dia e deixar-se contagiar pelos primeiros raios de Sol que lhe invadissem o pensamento para o conseguir fazer, mas nem assim estava certo de que o faria.

O pequeno som que estalava sempre à mesma hora provinha do seu relógio de pulso, exactamente à uma e quarenta e oito, sempre o mesmo, designios fantásticos da famosa precisão Suiça que nunca percebera. Era apenas o virar de dia na pequena máquina tecnologicamente perfeita que acontecia demasiado tarde como se o dia se prolongasse mais umas horas para além do suposto, ou se estivesse desfasado do tempo e tivesse simplesmente criado o seu próprio tempo.

Nunca entenderia a verdadeira razão.

As noites somavam-se, uma a seguir à outra, já lhes tinha perdido a conta sem que conseguisse fechar os olhos destruidos pela cegueira negra que o envolvia. Apenas a luz o acalmava, mais os pensamentos que a si mesmo, pois todo o percurso da escuridão fazia-o inerte. Deixava que lentamente tudo o quanto não era racional o abraçasse e os pensamentos desdobravam-se em pequenos fragmentos que já não sabia serem seus, ou terem explodido do seu todo, apenas flutuavam em seu redor com vontade própria.

Durante algumas noites tentou reagir, acender as luzes e simular o dia aclarando a noite, mas facilmente se apercebeu do seu falso engano. A noite tem uma magia que nenhuma luz poderá apagar jamais. Perderia sempre um pouco de si no avançar da escuridão e dificilmente conseguiria recuperar outro tanto no raiar do dia...

(...)

1 Comments:

Blogger Lígia Mendes said...

A tua lucidez é incrível. Consigo sentir, tocar, cheirar, vêr o que descreves... O que fica para além da imagem das palavras é só teu e de quem tu queres, consciente ou inconscientemente... Assim, se descreve um escritor, não?

8:10 da manhã  

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