terça-feira, março 07, 2006

Raízes desenraízadas

Lá fora, cai a neve. Branca. Leve. Parece algodão. Bate leve, levemente, como quem chama por mim. Será chuva? Será gente? Gente não é com certeza e a chuva não bate assim. Talvez fosse a neve, afinal. Mas, como tive de esperar ainda cerca de dezasseis anos para ver caír a neve... Naquele tempo, não sabia que era a neve que batia assim. Hoje, sei. Mas, também aprendi tantas outras coisas. Se me fosse possível escrever sobre tudo o que tenho aprendido, o Dicionário da Língua Portuguesa mais completo não teria palavras suficientes para descrever tudo. Pois há coisas que não podem ser exprimidas pelo código linguístico. Hoje, ouvi que Montagne dizia que, no momento em que escrevemos sobre o que sentimos ou pensámos, já nos estamos a traír, pois já é o sentimento ou pensamento de outro eu que estamos a traduzir. O eu que sentiu ou pensou morreu no mesmo momento em que sentiu ou pensou. Talvez seja assim mesmo, pois só isso explica as nossas incoerências e aquelas, mais abrangentes e dolorosas, que são as do mundo. Por exemplo, nascemos no seio de uma família. "Que lindo bebé!" Amam-nos, querem o nosso bem, é o que dizem. Será? Como estou para os filósofos, Peter Sloterdijk dizia que a educação é uma prisão, em que determinadas obras e regras de conduta se tornam obrigatórias para que o indivíduo seja aceite na sociedade. Mas, para que seja aceite, é preciso ser capaz, é preciso passar em todos (ou, pelo menos, na maioria) dos testes. Depois, se passou nos testes, põe-se a escrever e a criar novas regras para prender os indíviduos que nascerão em breve ou os outros, que já tendo nascido, ainda não são considerados pessoas. Afinal, será mesmo Amor, o que úne uma mãe a um filho? Ou será apenas uma obrigação, primeiro, e depois uma prova dada ao mundo de que é capaz de educar uma criança? Se assim não é, porque seremos sempre obrigados a dar o nosso melhor, mesmo se não o sabemos fazer? Para estarmos mais protegidos? Contra quê? Não estamos protegidos! Continuamos a sentir a neve a bater. Continuamos a sofrer. Continuamos a procurar respostas onde só existem perguntas. E, depois, quando não somos os melhores, ficamos com aquele sentimento de culpa. "Porque é que não fomos capazes?" "Programaram-nos para isso!" "A culpa é nossa!" Um dia, acordamos. Mandamos as culpas para o inferno e decidimos ser felizes. Dizemos que somos capazes, acreditamos. As culpas voltam sempre, é verdade. É difícil desprogramar. Mas, aqui reside a minha dúvida: algum dia partirão para sempre? Depende de quê? Depende de quem? No fundo de nós, existe a verdade absoluta. Mas, somos dotados de uma estrutura cognitiva marcada por toda a nossa experiência. Como apagar os dados introduzidos? Oh, maravilhosa era da tecnologia que não serves para o que realmente deverias servir!

No fundo de mim, eu até acredito que podemos desprogramar-nos. Mas, há momentos assim.

2 Comments:

Blogger Rogério Junior said...

Já desligava o computador. Hoje abri a folha três vezes, por três vezes os dedos recusaram-se a escrever. Uma palavra -gritava eu em surdina. Nada. Terminava o meu rádio inventado pela nova tecnologia. Este só toca o que eu quero. Pensei em ti. Abri o Mundos. Tocou uma melodia suave. Tocou Palma. Tocou em doces acordes, melodiou que "quanto a mim também me sinto um pouco desenraizado". Não acredito em coincidências. Nunca. E na longa metragem das minhas cento e vinte oito musicas de Palma, tocou "Nunca é tarde para se ter uma Infância Feliz". Deixo-te a letra:

"A gente já não sabe o que há-de fazer com a lua
Gerou-se um curto-circuito no canal telepático
E a caverna clandestina por detrás da cascata
Onde os amantes se entregavam à eternidade
Hoje não passa dum moderno armazém de sucata

Existem mil produtos para encher o vazio
Criámos computadores para ampliar a memória
E todos nós temos disfarces para aumentar a confusão
Só não sabemos como fazer o amor durar
O grande enigma continua a dar-nos cabo do coração

"Olá, a que horas parte o teu comboio?
O meu é às cinco e trinta e três
Ainda falta um bom bocado,
Queres contar-me a tua história?
Espera, deixa-me adivinhar,
Vais recomeçar noutro lado...
Trazes escrito na bagagem
Que a coisa aqui não deu...
Quanto a mim, também me sinto um pouco desenraízado... "

Também o amor se adapta às leis da economia
Investe-se a curto prazo e reduz-se a energia
E quando o barco vai ao fundo ninguém quer ser culpado
Mas nunca é tarde para se ter uma infância feliz
O cavaleiro solitário ainda sonha acordado"

Deixo-te apenas um pouco de Paz, consegues aceitar?

12:06 da manhã  
Blogger Lígia Mendes said...

Incrível, não? Aceito a paz, querido mano, mais por ti do que por acreditar verdadeiramente nela. Sabes, às vezes penso que a sociedade nos obriga a comportarmo-nos de acordo com determinados padrões e acabamos por esquecer que até somos importantes e que, supostamente, deveríamos ser únicos. O que este blog me tem permitido é deixar saír o que não cabe nesta sociedade, mas ainda há tanto a limpar... Para onde foram as raízes? O que é que aconteceu? é o momento da ruptura? Sinto-me como "A Jangada de Pedra" de Saramago... Eu e tu, a Península... Mas, e o resto do continente?

2:54 da tarde  

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